terça-feira, 21 de agosto de 2012

O fim do mundo segundo Ferrara

A semana passada visionei o mais recente filme do realizador nova-iorquino Abel Ferrara, "4:44 Último Dia na Terra", que já esteve a concurso em vários festivais de cinema como o de Veneza e Lisboa & Estoril. Apesar de bem recebido por vários críticos, teve pouco sucesso comercial e não atraiu a atenção dos mídia.

A acção do filme decorre na Nova-Iorque actual e a narrativa inicia-se na tarde da véspera do último dia da humanidade na Terra. A camada de ozono que cobre o planeta dissipar-se-á mais ou menos às 4:44 da madrugada seguinte, permitindo ao Sol penetrar o planeta com toda a sua força e dizimar a maior parte dos seres que nele habitam, humanos incluídos. Não há maneira nem meios para escapar à tragédia e poucos são os que contestam o fim.
Cisco, divorciado e com uma filha, e Skye, pintora, vivem juntos num apartamento e desfrutam das suas últimas horas juntos, fazendo os possíveis para manter a sanidade e aproveitando para despedir-se dos familiares, dos amigos e da cidade através da tecnologia e de uma última caminhada pela zona.

"4:44 Último Dia na Terra" é uma obra trágica com personagens que parecem aceitar os seus destinos sem questionarem o inevitável. No entanto, esta aceitação é bem mais complexa  do que aparenta e um dos protagonistas tem até a infelicidade de testemunhar um par de suicídios e experimentar a vontade de realizar acções, como consumir drogas injectáveis, ao perceber que não mais verá a filha nem a amante nem os que o rodeiam. Abel Ferrara assina aqui um drama com umas pitadas de ficção-científica; não há, porém, que tentar compreender as teorias são explicadas brevemente no filme e porão fim à vida humana. 4:44 Last Day on Earth não pretende perder o tempo com a ciência, mesmo contado com a presença de Al Gore e de documentários sobre o que conduziu a humanidade à tragédia, visto que o que interessa mostrar ao espectador são as reacções humanas prévias ao final da madrugada. No fundo, quer-se que o espectador se pergunte o que faria numa situação semelhante, com pouco tempo para viver, poucas oportunidades a aproveitar e com um grande ser sobre os ombros a relembrar-lhe que não falta muito para se juntar ao pó e às cinzas.
A representação está bem trabalhada na película, apostando no realismo das emoções e no retrato do medo de tudo perder e creio que a presença de uma diversidade de personagens é benéfica: além do contraste entre as personalidades de Cisco e Skye e entre os modos de pensar dos homens que falam nas televisões (Dalai Lama, Al Gore, um suposto guru e instrutor de ioga que Skye escuta com atenção), há os familiares dos protagonistas, o jovem vietnamita que entrega a sua última refeição ao domicílio e a quem é emprestado o portátil para uma última chamada por Skype aos pais, as pessoas que circulam nos seus carros a caminho de casa e amigos que querem voltar a drogar-se e a beber, já que nada mais podem fazer. Esta abundância de situações preenchem a narrativa, permitindo explorar um microcosmos (Cisco/Skye) e a humanidade em geral, tanto em Nova-Iorque, como noutras cidades, inclusive através das televisões.
Muitos recordarão o filme "Melancolia", de Lars von Trier, que abordava uma temática semelhante. Contudo, a possibilidade de o mundo acabar nesse filme não é tão inconstestável e o núcleo de personagens e a área que surgem são mais restritos. A família retratada apresenta uma frieza maior que as personagens de Ferrara e parece querer isolar-se numa propriedade, como que tentando escapar do ruído do mundo e encarar o destino sem nervosismo e sem tristeza. Ambos filmes são bons, mas considerá-los mais do que isso seria exagerado. O título aqui criticado, de Ferrara, aparenta ser melhor que o de von Trier.
"4:44 Último Dia na Terra" tem defeitos. A narrativa e as personagens parecem não ter sido totalmente exploradas e a inclusão de pensamentos mais filosóficos e de mais um que outro diálogo faria bem ao filme. Mas vê-lo é uma experiência interessante.

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