sexta-feira, 10 de agosto de 2012

As crianças perante o mundo

Aproveitando a estreia esta semana em Portugal de "O Meu Maior Desejo" e a exibição televisiva recente de "Pão Negro" na RTP2, vou fazer unir num só artigo as minhas críticas a ambos filmes. O facto de tanto um como outro serem protagonizados por crianças e jovens e centrarem-se nas suas visões do mundo que os rodeia é outro motivo para um artigo duplo.

Mencionarei primeiro o que vi há menos tempo, "Pão Negro", Pa Negre, que visionei inserido no ciclo Cinco Noites, Cinco Filmes da RTP2. É um filme espanhol de 2010 falado em castelhano e catalão que obteve vários prémios Goya da Academia de Cinema Espanhol em 2011, incluindo o de Melhor Filme do Ano. O realizador é Agustí Villaronga e o guião é baseado num romance homónimo de 2004 de Emili Teixidor.
A acção da película decorre no período que se seguiu à Guerra Civil Espanhola, num país já tomado pelo fascismo, na Catalunha rural. O protagonista, o pequeno Andreu, pertence a uma família cujas crenças contrariam as do regime.  Num dia normal Andreu descobre, entre as árvores a caminho de casa, um amigo ferido, Cullet, a sussurar a sua última palavra, Pintassilgo, e uma carroça partida junto a um cavalo e um homem mortos. A polícia desconfia que se trata de um crime e assume que a responsabilidade parcial ou total do crime é do pai de Andreu. O menino é enviado com o pai para a casa da mãe e das irmãs do segundo, que aproveita o sótão para se esconder; na casa moram também dois primos da idade de Andreu, Núria e Dionís. Andreu começa a frequentar a escola dos primos, enquanto tenta perceber quem cometeu o crime ao qual o pai é associado e quem é o Pintassilgo a que Cullet se referia no seu leito de morte, enquanto explora mitos da região e conhece personagens novas que lhe dão pistas e afectam a sua maneira de ver as coisas. No meio desta situação, Andreu vai crescer por dentro e desiludir-se com as mentiras e as desculpas dos adultos, de um mundo cruel e negro.
O filme está muito bem caracterizado, podendo o espectador sentir o negrume e a pobreza que abundavam na Espanha de Franco, particularmente no local de acção da narrativa. É interessante ver um filme que aborda um dos temas mais explorados no cinema espanhol escolher um olhar infantil prestes a entrar na adolescência e incluir a língua catalã, pouco conhecida no estrangeiro e pouco ouvida nas salas de cinema. As escolhas interpretativas são interessantes e eficazes.
É um bom filme, mas não fantástico. Já ouvi comentários à película pouco favoráveis aos papéis de Andreu e Núria, que são considerados um pouco inverosímeis e supostamente não reflectem os comportamentos normais de crianças em situações como aquela ou outras. A verdade é Andreu e Núria não tiveram infâncias normais e a sua maturidade é propositada; Andreu teve de lidar com as disputas entre ideias e crenças díspares incutidas pela família, pela escola e por amigos e é presenteado com contradições, situações estranhas e mentiras gravíssimas que alteram o seu ser; Núria perdeu o pai na guerra quando estava a lidar com o complexo de Electra freudiano, foi assediada por diferentes homens e perdeu uma mão numa explosão que lhe seria devolvida já carbonizada, pelo que não se importa de ser tocada por rapazes nem de fingir praticar feitiços.
"Pão Negro" é um filme que não recomendo aos mais sensíveis. Há sequências muito violentas, ainda que a pequena escala.

Noutro registo bem diferente está "Kiseki - O Meu Maior Desejo", que vi estando incluído no Festival de Cinema do Estoril. Trata-se de um filme japonês da autoria de Kore-Eda Hirokazu que já recebeu alguns prémios, nomeadamente pelo seu guião.
A narrativa fílmica tem como protagonista o jovem Koichi, filho de pais separados. Ele vive com a mãe e os avós, enquanto o irmão mais novo, Ryunosuke, vive com o pai, guitarrista num grupo de música rock, a uma distância considerável. Um dia, Koichi ouve um dos amigos mencionar um mito referente à nova linha férrea de comboios que une a cidadela onde vivem à região onde mora Ryunosuke: se revelarem verbalmente os seus maiores desejos no local e no momento em que dois comboios se cruzarem, circulando em sentido inverso, os seus pedidos serão concretizados. Koichi telefona ao irmão e fala-lhe do mito. Com o objectivo de pedir a reunião familiar, ambos combinam encontrar-se no tal local de cruzamento de comboios. Na sua companhia irão amigos que também têm desejos que querem concretizar: ressuscitar o gato recentemente falecido, casar-se no futuro com a professora que trabalha na biblioteca escolar ou tornar-se um ídolo popular. O filme também explora os problemas que enfrentam os adultos à sua volta.
"O Meu Maior Desejo" é uma homenagem aos sonhos e às ganas de aventuras características da infância. É um filme que retrata bem a força de vontade das crianças, mas também dos adultos e idosos, bem como o quotidiano dos japoneses na áreas urbanas mais pequenas. O realismo convive aqui com a magia dos pequenos mitos segredados entre pessoas e dos desejos, que nem se podem realizar. O drama relaciona-se bem com a comédia.
Os actores estão muito bem escolhidos e interpretam as suas personagens com verosimilhança e naturalidade. O facto de se apresentar algo sobre a situação de cada personagem principal e secundária aprofundiza a narrativa fílmica.
Este é um filme muito recomendável que vê com um sorriso.

De ambas películas, gostei mais de "O Meu Maior Desejo", mas creio que vale a pena ver estas duas obras tão diferentes e interessante, uma mais sombria e arrepiante, outra brilhante como uma estrela solar.

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